segunda-feira, 17 de junho de 2013

Texto utilizado na prova do concurso do MP dia 16 de junho de 2013.

A revolução do pós-papel
A transição para a era digital é a mais radical transformação da nossa história intelectual desde a invenção do alfabeto grego. Sim, o momento é histórico: há mudanças profundas na leitura, na escrita – e talvez até dentro do cérebro humano.
André Petry, de Nova York
Sócrates, o homem mais sábio de todos os tempos, estava enganado. Com a genial invenção das vogais no alfabeto grego, a escrita estava se disseminando pela Grécia antiga – e Sócrates temia um desastre. Apreciador da linguagem oral, achava que só o diálogo, a retórica, o discurso, só a palavra falada estimulava o questionamento e a memória, os únicos caminhos que conduziam ao conhecimento profundo, à sabedoria. Temia que os jovens atenienses, com o recurso fácil da escrita e da leitura, deixassem de exercitar a memória e, como a palavra escrita não fala, perdessem o hábito de questionar. Sua mais conhecida diatribe contra a escrita está em Fedro, de Platão, seu fiel seguidor. Ali, Sócrates diz que a escrita daria aos discípulos “não a verdade, mas a aparência de verdade”. O grande filósofo intuiu que a transição da linguagem oral para a escrita seria uma revolução. Foi mesmo, só que numa direção promissora. Permitiu o mais esplêndido salto intelectual da civilização ocidental.O temor é que o universo digital, com abundância de informações e intermináveis estímulos visuais e sonoros, roube dos jovens a leitura profunda, a capacidade de entrar no que o grande filósofo Walter Benjamim chamou de “silêncio exigente do livro”. Durante séculos, os livros impressos foram aperfeiçoados para favorecer a imersão. O tipo de letra, o entrelinhamemo, os espaços em branco – tudo feito como um delicado ‘convite à leitura. São aspectos relevantes para quem lê e para quem escreve. John Updike achava que seus livros só faziam sentido se impressos em determinada fonte – a Janson. A leitura on-line, de resolução imprecisa, luminosidade excessiva e crivada de penduricalhos piscantes, é só distração. Os leitores eletrônicos estão corrigindo boa parte dessas imperfeições, mas ainda têm longo caminho a percorrer. Estudo feito pelo professor Terje Hillesund, da Universidade de Sravanger, na Noruega, mostra que, durante uma leitura reflexiva, as pessoas gostam de manter os dedos entre as páginas, como que segurando uma ideia de páginas atrás, para revisitá-la quando quiserem. Intangível e volátil, o livro digital, neste aspecto, é uma nulidade (por enquanto).
Leitura profunda não é esnobismo intelectual. É por meio dela que o cérebro cria poderosos circuitos neuronais. “O homem nasce geneticameme pronto para ver e para falar, mas não para ler. Ler não é natural. É uma invenção cultural que precisa ser ensinada ao cérebro”, explica a neurocientista Maryanne Wolf. Para tanto, o cérebro tem de conectar os neurônios responsáveis pela visão, pela linguagem e pelo conceito. Em suma, precisa redesenhar a estrutura interna, segundo suas circunstâncias. Um cérebro reorganizado para ler caracteres chineses ativa áreas que jamais são usadas por um cérebro educado para ler no alfabeto latino do português. O fascinante é que, ao criar novos caminhos neuronais, o cérebro expande sua capacidade de pensar, multiplicando ali possibilidades intelectuais – o que, por sua vez, ajuda a expandir ainda mais a capacidade de pensar, numa esplêndida dialética em que o cérebro muda o meio e o meio muda o cérebro. Pesquisadores da área de neurologia cognitiva investigam se a desatenção intrínseca do digital está afetando a construção dos circuitos neuronais.
É cedo para saber. Por via das dúvidas, é importante garantir que um jovem forme circuitos neuronais amplos antes de render-se por completo à rotina digital. A boa literatura ajuda. É desnecessário fazer pesquisa científica para descobrir o impacto que nos causa a maestria de Amon Tchekov falando de uma dama e seu cachorrinho. Mas até existe pesquisa. Em 2008, cientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, reuniram 166 universitários e aplicaram um teste para avaliar características como extroversão, estabilidade emocional, afabilidade. Em seguida, dividiram os estudantes em dois grupos. Um grupo foi convidado a ler A dama do cachorrinho, de Tchekov, pequena pérola sobre a angústia e o arrebatamento de um casal de amantes. Outro leu a mesma história, só que em forma relatorial. Depois, os pesquisadores reaplicaram o teste. O grupo que lera a prosa de Tchekov mudara significativamente a percepção sobre suas emoções. O outro, que lera um texto burocrático, mudara muito menos.

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