terça-feira, 12 de agosto de 2014

Fábula do homem Bem Intencionado



Era uma vez homem bem intencionado, que queria criar um mundo melhor; onde as pessoas não tivessem preocupações e todos fossem muito felizes. Para isso, começou lutando na rua onde morava para minorar os problemas comuns e individuais, até que se fez conhecido em todo o bairro; então começou a lutar pela solução dos problemas do bairro, tornando-se, assim, conhecido em toda a cidade. Aí, então, o homem bem intencionado transformou-se em porta-voz de sua cidade e de seus concidadãos; porém, quando tal sucedeu, a sua fama já havia percorrido toda a província e, de tal forma seu nome era conhecido, que o homem bem intencionado não teve outra solução, que assumir os destinos de sua província para poder solucionar os problemas pessoais e coletivos, criando a felicidade plena de todos os cidadãos provinciais.

Entrementes, sua fama já havia atravessado as divisas provinciais e se espalhado por todo o país, trazendo de todos os lugares, dos rincões mais afastados da pátria, homens que vinham em busca de soluções para os problemas que os vinham afligindo desde muito tempo. E tal foi a afluência que o homem bem intencionado não teve outra saída que se fazer líder nacional e tomar as rédeas de sua nação, para que seu povo alcançasse a felicidade plena.

Mas, logo que assumiu a liderança da Pátria, o homem bem intencionado descobriu que seu povo, por haver atravessado constantes períodos de infelicidade, não estava mais apto para ser feliz. Empreendeu, então, uma longa campanha educativa, para que seu povo reencontrasse o caminho perdido; porém, como sua voz não podia chegar a todos os recantos da pátria, o homem intencionado viu-se obrigado a nomear porta-vozes, que levassem a cada lar, rico ou pobre, a cada fábrica, a cada operário, a cada patrão, a cada fazenda, a cada lavrador, a cada escola, a cada lugar de diversão, ao mais humilde habitante do país, a palavra que lhes indicaria a direção da felicidade plena.

E qual não foi a decepção do homem bem intencionado ao descobrir que também seus porta-vozes estavam esquecidos do que era a verdadeira felicidade, e essa decepção foi tão grande que não lhe restou outra alternativa que nomear outros educadores para reeducar os primeiros. Ai, também, houve problemas, pois tanto os educadores como os reeducadores mostravam-se incapazes de atingir o objetivo desejado, pois era tamanho o tempo que haviam se afastado da felicidade, que só deixou ao homem bem intencionado a alternativa de, muito contra a vontade, instituir um plano geral de busca da felicidade que enquadrasse toda a população, até que não restasse ninguém, que não recebesse a educação indispensável para o reencontro da direção que levasse à felicidade geral e plena.

Mas aí, e outra vez, o homem bem intencionado sofreu mais uma grande decepção, pois descobriu que, quanto mais se educava, mais seu povo se distanciava do objetivo que ele propunha, até mesmo porque a posse de mais conhecimentos tornava o seu povo mais astuto, e isso permitia que todos enganassem aos educadores que, por sua vez, já haviam enganado aos seus reeducadores e, assim, sucessivamente, fazendo com que a nação se mantivesse afastada da direção que conduzia à rota da felicidade coletiva.

Então, mais uma vez, o homem bem intencionado não teve outra alternativa, que usar do recurso da força, para que seu povo fosse feliz e, para tal, criou um corpo coercivo que deveria corrigir os desvios da direção da rota do caminho que levaria à felicidade; decisão esta que só o levou a constatar quão distante estava seu povo da felicidade plena, pois começou a aparecer sinais de descontentamento por todo o país, e esse descontentamento cresceu tanto que o homem bem intencionado viu-se obrigando a construir grandes centros indicadores da direção da rota, que conduziria à senda, que levaria ao caminho da felicidade. Mas, ainda assim, como seu povo já estava demasiado acostumado a trilhar por caminhos outros que nunca conduziriam à felicidade, começaram os protestos.

Tendo começado timidamente, foram se avolumando e tomando um matiz de violência latente de uma forma tão ameaçadora que o homem bem intencionado viu-se constrangido a autorizar ao corpo coercivo a empregar toda a sua força para recolher toda a população ao centros reeducadores para que ela não continuasse sendo infeliz sem saber. Porém, quando todo o povo estava agrupado nos centros, o homem bem intencionado descobriu que os membros do corpo coercivo, ao cuidarem para que ninguém se afastasse do redil que os levaria, finalmente, à felicidade, mantinham-se, eles próprios, fora do dito caminho, o que obrigou ao homem bem intencionado a construir por volta dos centros primitivos, outros centros, que abrigassem os que estavam fora daqueles; mas isto só conduziu a um maior clamor, pois todos afirmavam, que não queriam ser felizes, uma vez que já estavam acostumados com a infelicidade.

E o clamor cresceu de tal forma, que - novamente - o homem bem intencionado não teve outra alternativa que mandar a força coerciva impor silêncio, pois tinha certeza que era aquele barulho a única coisa que impedia a todos de alcançar a completa felicidade que ele via a um passo. Foi nesta ocasião que o seu povo começou a sentir-se incomensurável e profundamente infeliz e não tardou a aparecer os primeiros sintomas de rebeldia organizada. E o homem bem intencionado que jamais conhecera a felicidade plena por ver seu povo sempre infeliz, desta vez sentiu-se mais infeliz ainda, e resolveu mandar trazer de outro país, que já havia encontrado a direção do rumo onde se localizava o início da senda que conduzia a felicidade, um grupo de sábios para determinar as razões pelas quais seu povo teimava em permanecer distanciado de tão nobre objetivo.

E assim foi feito.

Depois de muitos anos de estudos, investigações, pesquisas e diligências, quando o grupo de sábios apresentou as conclusões em um longo documento acadêmico, de alto teor erudito, o homem bem intencionado descobriu que seu povo, ademais de haver perdido completamente a noção do que era a verdadeira felicidade, tampouco compreenderia as reais razões de havê-la perdido devido à linguagem técnica do referido documento, por isso ocupou-se pessoalmente, durante outros longos anos, em resumir o conteúdo do relatório do grupo de sábios estrangeiros visando não somente oferecer uma explicação plausível que justificasse seu empenho em forçá-los a buscar a felicidade, como também demonstrar o grave erro que significava resistir a tal objetivo.

Um pouco antes de terminar sua grandiosa tarefa, explodiu uma rebelião que destruiu com os centros de reeducação, varreu o corpo coercivo e assassinou ao homem bem intencionado sem que as razões contidas no resumo do documento fossem conhecidas. E o homem bem intencionado morreu muito infeliz por ver aquele documento ser esmagado sob os pés da turba enfurecida, fazendo com que ele, o único a conhecer as razões da infelicidade coletiva, levasse para o túmulo o segredo do seu sonho majestoso.

E tal foi a fúria da multidão, durante os dias da rebelião, que logo começaram a aparecer elementos vandálicos e depredadores que se aproveitavam da justa indignação dos cidadãos para seus inconfessáveis fins, o que só trouxe mais infelicidade ainda.

Aí apareceu outro homem bem intencionado que conseguiu acalmar o povo, visando com isto, separar os elementos vandálicos e depredadores dos pacíficos cidadãos que só necessitavam de ordem e tranqüilidade para ser felizes. Porém, a tal ponto havia chegado a ação desagregadora dos elementos vandálicos e depredadores, que o novo homem bem intencionado não teve outra alternativa que criar um corpo defensor da ordem e tranqüilidade para assegurar aos verdadeiros cidadãos o direito de encontrar a sua própria felicidade. Aí começou o primeiro problema do novo homem bem intencionado: os elementos vandálicos e depredadores haviam adquirido tal força que não existia mais o menor sinal nem de ordem nem de tranqüilidade, fato que tornava muito difícil separar os pacíficos cidadãos dos ditos elementos, não deixando ao novo homem bem intencionado outra saída que a de criar centros de confinamentos para proteger os verdadeiros cidadãos da ação dos elementos vandálicos e depredadores. 

Mas aí, já ninguém mais se lembrava de procurar orientação para chegar ao ponto onde poderia estar o início do caminho que levaria à senda que conduziria à felicidade, uma vez que os guardiães do corpo defensor da ordem e tranqüilidade tinham-se instalado ao lado de cada verdadeiro cidadão para que nenhum elemento vandálico e depredador viesse criar desordem, perturbando-lhe a tranqüilidade, fato que levava a esses mesmos verdadeiros cidadãos a se sentirem muito intranqüilos, não só porque havia elementos vandálicos e depredadores por toda parte, como também porque ninguém se sentia tranqüilo tendo sempre ao seu lado um guardião do corpo defensor da ordem e tranqüilidade.

Esta situação tornou-se de tal forma insustentável, que não demorou para que os verdadeiros cidadãos desencadeassem uma nova rebelião que não só acabou com todo o resíduo de ordem e tranqüilidade que ainda existia, como também aniquilou com o corpo defensor da ordem e tranqüilidade, como massacrou o novo homem bem intencionado na metade da implantação de sua generosa e gigantesca obra. Ademais, causou tal número de mortes e destruição que todos foram tomados por um grande medo. 

Mas aí surgiu um terceiro homem verdadeiramente bem intencionado lembrando-se que tudo aquilo acontecia porque o povo abandonara sua busca pacífica da felicidade e se perdera por caminhos que somente conduziam à desordem, intranqüilidade e infelicidade coletivas. Com tanta veemência este terceiro homem bem intencionado pregou seus postulados que trouxe para seu bando todos os que tinham medo, e que foram aderindo, justamente, porque tinham medo... E assim, logo se formou um grande partido, dos que afirmavam buscar uma volta às origens, que a conseqüência natural foi uma séria pugna por submeter os que não aderiram porque tinham medo de se submeter aos que aderiram por medo.

Com isso criou-se um impasse que resultou em um grande choque entre os dois grupos, mergulhando todo o país em um verdadeiro caos até que, no meio do caos, alguém (possivelmente mais um homem bem intencionado) encontrou as conclusões do grupo de sábios estrangeiros (devidamente resumidas pelo primeiro homem bem intencionado e, portanto, fácil de ser assimilada por todos) que rezava que a infelicidade era inerente ao ser humano, pois não se conhecia nenhuma outra espécie animal que se sentisse infeliz. Afirmava ainda que a marcha do homem era uma marcha inexorável em direção a uma infelicidade sempre maior porque a espécie humana estava em contradição com a vida...

A divulgação, do resumo das conclusões do grupo de sábios estrangeiros, aumentou de tal modo o caos e o descontentamento que, sem que ninguém soubesse como, tudo explodiu em uma grande bola amarela que não deixou nada, salvo um último homem, que se sentiu muito infeliz por ser o único sobrevivente em um mundo destruído. E sua infelicidade aumentou, muito mais, ao descobrir que não havia venenos com que ele pudesse se envenenar, não havia alturas de onde pudesse se jogar, não havia objetos contundentes com que pudesse se ferir, não havia nada sólido para romper a própria cabeça. Restava só ele e um imenso e desolado oceano de pó.

 Neste momento, mais que nunca, este homem se sentiu, incomensuravelmente, infeliz. Foi aí que, olhando para o resumo do documento do grupo de sábios que, ainda, tinha em suas mãos, descobriu que a grande destruição extinguira com os todos os elementos que criavam as condições para a infelicidade coletiva, então começou a sentir-se feliz pois agora a ele, e só a ele, cabia a gloriosa tarefa de reconstruir o mundo com uma nova humanidade que iria conhecer a felicidade coletiva plena... e começo a sentiu-se completamente feliz.

MORAL: “De bem intencionados o inferno está cheio” - diz o adágio. Porém, cuidado, sempre sobra algum cretino para tentar construir a felicidade coletiva.

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