Em 53% de
116 hospitais auditados, há falhas no controle de remédios, o que põe vidas em
risco

RIO - Enzo
Luir, que recebeu diagnóstico de fibrose cística aos 6 meses, tem hoje 2 anos,
mora em Palmas e toma vários remédios para controlar a doença, que faz com que
não produza as enzimas responsáveis pela absorção dos alimentos. A mãe, Tereza
Nunes Leite, de 33 anos, diz que ele precisa tomar pancreatina diariamente, mas
já ficou seis meses sem o medicamento:
— Peço ajuda
a mães de outros estados. Este ano, ele ficou dois meses sem o medicamento, e
acabei dando um vencido que consegui. É muito caro, não posso comprar. Mas aí
ele acaba internado, vai ficando desnutrido. Aquadek, outro remédio, ele só
tomou uma vez, em Brasília. Em Palmas, ano passado, consegui 22 latas de uma
vitamina. Mas ele precisava quase desta quantidade por mês.
A falta de
medicamentos é a principal consequência de outro tipo de irregularidade
encontrada pelo GLOBO em levantamento no Tribunal de Contas da União (TCU), no
Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) e nos Ministérios Públicos:
a má gestão. Segundo relatório do TCU deste ano, com base em auditorias em 116
hospitais do país, 53% das unidades apontaram carência de instrumentos de
gestão (como controles de saída e distribuição). Há, ainda, relatos de falhas
no gerenciamento do estoque central (sob responsabilidade da Secretaria de
Saúde) ou local (a cargo da própria unidade); remédios não entregues por
laboratórios no prazo; falta de comunicação sobre baixos níveis de estoque;
perda de validade de remédios; e problemas no fornecimento de medicamentos pelo
Ministério da Saúde.
Também
moradora de Palmas, e mãe de uma menina de 9 anos, Francisca de Souza, de 51
anos, lembra que em junho faltou pancreatina:
— Chegou em
meados de julho, mas o problema é que sempre falta. É indispensável, mas
ficamos sem ela por 90 dias em 2011. Como nunca tem todos os remédios, há três
meses minha filha ficou oito dias internada.
Pneumologista,
Carlos Antônio Riedi explica que 85 de cada cem pacientes têm insuficiência
pancreática, o que faz com que precisem de pancreatina:
— Eles não
absorvem proteínas e gorduras e ficam desnutridos e mais suscetíveis a
infecções. Sem tratamento, morrem. Mas, se uma pessoa for comprar tudo o que um
paciente com fibrose precisa tomar, gastará em média R$ 15 mil por mês.
Segundo a
Secretaria de Saúde do Tocantins, “pancreatina e alfadornase estão disponíveis
na Assistência Farmacêutica do estado”.
PROBLEMAS NO
SISTEMA DE CONTROLE DE ESTOQUE
A falha no
controle do estoque é um dos maiores problemas de gestão de medicamentos no
país. O Hórus, sistema on-line com este fim criado em 2009 pelo governo federal
e que pode ser usado por estados e municípios, funciona, hoje, em 15 estados,
segundo o Ministério da Saúde. Os demais, diz a pasta, teriam sistema próprio
que se comunica com o federal. Entre as prefeituras, 1.510 municípios — menos
da metade do total — foram treinados para usar o sistema, apesar de 2.700 terem
demonstrado interesse nele.
Mesmo onde
foi implantado, o sistema esbarra em problemas estruturais, como internet
lenta: este é o caso em cidades do Norte, por exemplo. Inclusive numa capital
da região, Belém, há relatos de falha do Hórus por falta de conexão rápida.
— Colocaram
esse sistema, mas aqui não tem internet com velocidade o tempo inteiro. Então,
quando o paciente vai à unidade, o remédio não é fornecido porque o sistema não
está funcionando — diz Belina Soares, diretora da Associação dos Pacientes
Renais Crônicos em Belém.
— O Hórus
precisa de internet para rodar, e, realmente, em alguns municípios a conexão
ainda não é boa. Mas a dispensação (o fornecimento) do remédio não pode deixar
de ocorrer por isso. A unidade pode dispensá-lo e fazer o registro depois — diz
o diretor de Assistência Farmacêutica do ministério, José Miguel do Nascimento,
acrescentando que a pasta está com edital aberto para contratar banda larga
para quase 16 mil unidades de saúde do Programa Saúde da Família.
Secretário
executivo do Observatório Social de Belém, Ivan Silveira diz que, este ano, a
entidade passou a promover a campanha “O melhor remédio é a transparência”,
pedindo a divulgação on-line, pelos governos, dos estoques de remédios.
— Isso bate
em um ponto nevrálgico nesta área, o descontrole intencional — diz Silveira,
destacando que, este mês, após a entidade levar o pedido ao Ministério Público
(MP), o governo do Pará publicou portaria regulamentando “o controle social dos
estoques”.
Há casos de
falta de remédio também no Piauí. Em auditoria deste ano, o Denasus relata que
o Hospital Universitário do Piauí, em todo o primeiro semestre de 2013,
funcionou com desabastecimento de 75%: 295 remédios, de um total de 391,
estavam com estoque zerado no período.
Afirmando
que o hospital recebeu do SUS, em 2013, R$ 14,1 milhões (mas os serviços
prestados comprovados representariam apenas 3,19% do valor, o que, diz o
Denasus, “é o SUS bancando a ociosidade do H. Univ. do Piauí”), o órgão de
controle relata a ocorrência de “empréstimo” de medicamentos a outras unidades.

A Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que administra a unidade, afirmou
que, “no período do diagnóstico (primeiro semestre de 2013), o Hospital
iniciava suas atividades após 23 anos fechado”; e que “o desabastecimento em
2013 não se confirma neste momento”.
— É uma
frustração gigantesca ficar sem medicamento — diz Marcelo Ferreira, de 58 anos,
que faz tratamento para hepatite C no Rio, depois de ter passado por
transplante de fígado.
Ferreira
precisa de alfapoetina por causa de uma anemia profunda. Esteve na farmácia
RioFarmes em 1º de julho e 1º de agosto, mas não encontrou o remédio; por isso,
teve de fazer duas transfusões e ficar em “repouso absoluto”. Se fosse
comprá-lo, gastaria, em média, R$ 1.300 por semana.
— A anemia
grave traz riscos para o fígado transplantado e para outros órgãos. Se não
tomar o remédio, a pessoa pode nem conseguir andar — explica o hepatologista
João Luiz Pereira.
A Secretaria
estadual de Saúde do Rio diz que recebeu alfapoetina do fornecedor “em 30 de
julho, e a dispensação foi restabelecida em 4 de agosto na RioFarmes. Os
Centros de Referência estão recebendo o insumo ao longo desta semana (semana
passada)”. Também no Rio, o MP federal instaurou inquérito civil público este
ano para apurar a falta de boceprevir e telaprevir. Na Defensoria, ações foram
ajuizadas pedindo telaprevir. A secretaria diz não haver desabastecimento
destes remédios.
Em Sergipe,
a situação se tornou tão grave que o MP federal e o estadual chegaram a pedir
intervenção do ministério na gestão no estado. Em ação civil pública ajuizada
em janeiro contra a União e o estado, constataram irregularidades, incluindo
déficit de medicamentos como os quimioterápicos. A ação, na Justiça Federal,
traz também relato da OAB, de maio de 2013, sobre um caso em que cerca de dez
toneladas de medicamentos vencidos teriam sido incineradas.
O Hospital
de Urgência de Sergipe e a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes teriam chegado
a precisar de doações de remédios contra o câncer. O MP diz que, segundo a
própria farmácia do hospital, “há pacientes internados em decorrência da
ausência” do sprycel, usado para leucemia. Existem, ainda, relatos de falta de
antibióticos, com “vários casos de pacientes que foram a óbito por
descontinuidade do uso de antimicrobianos”.
Sobre o
pedido de intervenção federal, a Secretaria de Saúde de Sergipe disse que a
tentativa foi frustrada, pois a maior parte da verba é estadual. “A intervenção
seria sobre os recursos federais, menos de 24% de todo o gasto com a saúde”,
diz. O ministério afirmou que “tem subsidiado a Justiça com todas as
informações solicitadas”.
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