segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Má gestão em hospitais leva à falta de remédios

Em 53% de 116 hospitais auditados, há falhas no controle de remédios, o que põe vidas em risco


RIO - Enzo Luir, que recebeu diagnóstico de fibrose cística aos 6 meses, tem hoje 2 anos, mora em Palmas e toma vários remédios para controlar a doença, que faz com que não produza as enzimas responsáveis pela absorção dos alimentos. A mãe, Tereza Nunes Leite, de 33 anos, diz que ele precisa tomar pancreatina diariamente, mas já ficou seis meses sem o medicamento:

— Peço ajuda a mães de outros estados. Este ano, ele ficou dois meses sem o medicamento, e acabei dando um vencido que consegui. É muito caro, não posso comprar. Mas aí ele acaba internado, vai ficando desnutrido. Aquadek, outro remédio, ele só tomou uma vez, em Brasília. Em Palmas, ano passado, consegui 22 latas de uma vitamina. Mas ele precisava quase desta quantidade por mês.

A falta de medicamentos é a principal consequência de outro tipo de irregularidade encontrada pelo GLOBO em levantamento no Tribunal de Contas da União (TCU), no Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) e nos Ministérios Públicos: a má gestão. Segundo relatório do TCU deste ano, com base em auditorias em 116 hospitais do país, 53% das unidades apontaram carência de instrumentos de gestão (como controles de saída e distribuição). Há, ainda, relatos de falhas no gerenciamento do estoque central (sob responsabilidade da Secretaria de Saúde) ou local (a cargo da própria unidade); remédios não entregues por laboratórios no prazo; falta de comunicação sobre baixos níveis de estoque; perda de validade de remédios; e problemas no fornecimento de medicamentos pelo Ministério da Saúde.
Também moradora de Palmas, e mãe de uma menina de 9 anos, Francisca de Souza, de 51 anos, lembra que em junho faltou pancreatina:
— Chegou em meados de julho, mas o problema é que sempre falta. É indispensável, mas ficamos sem ela por 90 dias em 2011. Como nunca tem todos os remédios, há três meses minha filha ficou oito dias internada.

Pneumologista, Carlos Antônio Riedi explica que 85 de cada cem pacientes têm insuficiência pancreática, o que faz com que precisem de pancreatina:
— Eles não absorvem proteínas e gorduras e ficam desnutridos e mais suscetíveis a infecções. Sem tratamento, morrem. Mas, se uma pessoa for comprar tudo o que um paciente com fibrose precisa tomar, gastará em média R$ 15 mil por mês.
Segundo a Secretaria de Saúde do Tocantins, “pancreatina e alfadornase estão disponíveis na Assistência Farmacêutica do estado”.

PROBLEMAS NO SISTEMA DE CONTROLE DE ESTOQUE

A falha no controle do estoque é um dos maiores problemas de gestão de medicamentos no país. O Hórus, sistema on-line com este fim criado em 2009 pelo governo federal e que pode ser usado por estados e municípios, funciona, hoje, em 15 estados, segundo o Ministério da Saúde. Os demais, diz a pasta, teriam sistema próprio que se comunica com o federal. Entre as prefeituras, 1.510 municípios — menos da metade do total — foram treinados para usar o sistema, apesar de 2.700 terem demonstrado interesse nele.

Mesmo onde foi implantado, o sistema esbarra em problemas estruturais, como internet lenta: este é o caso em cidades do Norte, por exemplo. Inclusive numa capital da região, Belém, há relatos de falha do Hórus por falta de conexão rápida.

— Colocaram esse sistema, mas aqui não tem internet com velocidade o tempo inteiro. Então, quando o paciente vai à unidade, o remédio não é fornecido porque o sistema não está funcionando — diz Belina Soares, diretora da Associação dos Pacientes Renais Crônicos em Belém.
— O Hórus precisa de internet para rodar, e, realmente, em alguns municípios a conexão ainda não é boa. Mas a dispensação (o fornecimento) do remédio não pode deixar de ocorrer por isso. A unidade pode dispensá-lo e fazer o registro depois — diz o diretor de Assistência Farmacêutica do ministério, José Miguel do Nascimento, acrescentando que a pasta está com edital aberto para contratar banda larga para quase 16 mil unidades de saúde do Programa Saúde da Família.
Secretário executivo do Observatório Social de Belém, Ivan Silveira diz que, este ano, a entidade passou a promover a campanha “O melhor remédio é a transparência”, pedindo a divulgação on-line, pelos governos, dos estoques de remédios.
— Isso bate em um ponto nevrálgico nesta área, o descontrole intencional — diz Silveira, destacando que, este mês, após a entidade levar o pedido ao Ministério Público (MP), o governo do Pará publicou portaria regulamentando “o controle social dos estoques”.

Há casos de falta de remédio também no Piauí. Em auditoria deste ano, o Denasus relata que o Hospital Universitário do Piauí, em todo o primeiro semestre de 2013, funcionou com desabastecimento de 75%: 295 remédios, de um total de 391, estavam com estoque zerado no período.

Afirmando que o hospital recebeu do SUS, em 2013, R$ 14,1 milhões (mas os serviços prestados comprovados representariam apenas 3,19% do valor, o que, diz o Denasus, “é o SUS bancando a ociosidade do H. Univ. do Piauí”), o órgão de controle relata a ocorrência de “empréstimo” de medicamentos a outras unidades.

A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que administra a unidade, afirmou que, “no período do diagnóstico (primeiro semestre de 2013), o Hospital iniciava suas atividades após 23 anos fechado”; e que “o desabastecimento em 2013 não se confirma neste momento”.
— É uma frustração gigantesca ficar sem medicamento — diz Marcelo Ferreira, de 58 anos, que faz tratamento para hepatite C no Rio, depois de ter passado por transplante de fígado.

Ferreira precisa de alfapoetina por causa de uma anemia profunda. Esteve na farmácia RioFarmes em 1º de julho e 1º de agosto, mas não encontrou o remédio; por isso, teve de fazer duas transfusões e ficar em “repouso absoluto”. Se fosse comprá-lo, gastaria, em média, R$ 1.300 por semana.

— A anemia grave traz riscos para o fígado transplantado e para outros órgãos. Se não tomar o remédio, a pessoa pode nem conseguir andar — explica o hepatologista João Luiz Pereira.

A Secretaria estadual de Saúde do Rio diz que recebeu alfapoetina do fornecedor “em 30 de julho, e a dispensação foi restabelecida em 4 de agosto na RioFarmes. Os Centros de Referência estão recebendo o insumo ao longo desta semana (semana passada)”. Também no Rio, o MP federal instaurou inquérito civil público este ano para apurar a falta de boceprevir e telaprevir. Na Defensoria, ações foram ajuizadas pedindo telaprevir. A secretaria diz não haver desabastecimento destes remédios.

Em Sergipe, a situação se tornou tão grave que o MP federal e o estadual chegaram a pedir intervenção do ministério na gestão no estado. Em ação civil pública ajuizada em janeiro contra a União e o estado, constataram irregularidades, incluindo déficit de medicamentos como os quimioterápicos. A ação, na Justiça Federal, traz também relato da OAB, de maio de 2013, sobre um caso em que cerca de dez toneladas de medicamentos vencidos teriam sido incineradas.

O Hospital de Urgência de Sergipe e a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes teriam chegado a precisar de doações de remédios contra o câncer. O MP diz que, segundo a própria farmácia do hospital, “há pacientes internados em decorrência da ausência” do sprycel, usado para leucemia. Existem, ainda, relatos de falta de antibióticos, com “vários casos de pacientes que foram a óbito por descontinuidade do uso de antimicrobianos”.

Sobre o pedido de intervenção federal, a Secretaria de Saúde de Sergipe disse que a tentativa foi frustrada, pois a maior parte da verba é estadual. “A intervenção seria sobre os recursos federais, menos de 24% de todo o gasto com a saúde”, diz. O ministério afirmou que “tem subsidiado a Justiça com todas as informações solicitadas”.


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