Política e religião: entre o mal e o bem
RELIGIÃO POLÍTICA
“O desejo de
saber o porquê e o como chama-se curiosidade, e não existe em qualquer
criatura viva a não ser no homem. Assim, não é só por sua razão que o homem se
distingue dos outros animais, mas também por esta singular paixão”, afirma
Hobbes.[1] A curiosidade humana pressupõe uma
atitude crítica diante dos fatos, dos discursos e das ideologias que
interpretam-nos. Trata-se uma postura de ruptura com o maniqueísmo, o
sectarismo e o dogmatismo que tomam a sua verdade como a verdade
absoluta.
O olhar
curioso não se contenta com a divisão do mundo em polaridades absolutas,
entre o mal e o bem; é um olhar que coloca em suspenso as nossas
certezas, os nossos preconceitos e os princípios que geralmente aceitamos como
dados para a análise da realidade. Esta é muito mais complexa do que os fáceis
raciocínios esquemáticos e próprios dos que se vêem como profetas e guardiões
do bem, da palavra e do livro sagrados, contra o outro, o qual
representaria o mal.
Embora sejam
esferas autônomas da ação humana, política e religião se mesclam tanto no que
diz respeito ao quanto aos recursos práticos. Na verdade, a política não pode
prescindir plenamente da religião e, em certas circunstâncias, o discurso
religioso cumpre uma função claramente política. Dessa forma, o dissidente
político passa a ser tratado como o herege, merecedor de todas as punições; os
que não aceitam o poder político imperial e hegemônico passam a ser
classificados como representantes das forças do mal; os que defendem a ordem
social vigente não titubeiam em demonizar os seus oponentes; o mal é
incorporado no outro. A linguagem maniqueísta transforma o bem em mal e
vice-versa. Pois o que representa o paraíso para uns, pode ser o inferno para
outros. Nesta senda, a política é pensada como a luta entre o bem e mal.
A
modernidade pretendeu romper as amarras da superstição e da ignorância e
instituir a razão; pleiteou a separação do Estado das amarras da moral
religiosa e do poder espiritual representado pelas autoridades eclesiásticas.
Maquiavel advogou que a ação política tem um status próprio e
diferente da moral religiosa. A ação política busca resultados; o estadista, ao
contrário do profeta, é julgado por sua eficácia. O florentino observa que, do
ponto de vista da política, o mal e o bem não são absolutos; o mal pode se
transmutar em bem, e vice-versa. Cabe ao estadista ter a sabedoria (virtù) para
usar o mal e o bem conforme a necessidade. Como afirma Maquiavel, “o tempo
arrasta consigo todas as coisas e pode transmudar o bem em mal e o mal em bem”
(1977: 20).
A lógica da
força
Referir-se
ao bem e o mal nos leva a um aspecto negligenciado e/ou objeto de polêmica: a
violência na política. Os gregos ensinaram que a política é a esfera da pólis,
o que pressupõe argumentação e discussão de idéias. Hannah Arendt observou que
a política, isto é, o poder político, se refere ao coletivo, pressupõe
consenso e se legitima no consentimento do povo. “O poder e a violência se
opõem: onde um predomina de forma absoluta, o outro está ausente”. (ARENDT:
1973: 30)
Porém, se é
verdade que o poder, em sua essência, se distingue da violência e que não se
sustenta única e exclusivamente pelo recurso a esta, também é fato que o poder
não prescinde da violência e recorre à mesma sempre que necessário. Como
escreve Bobbio:
“O que
caracteriza o poder político é a exclusividade do uso da força em relação à
totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade
que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda sociedade
organizada, no sentido de monopolização da posse e uso dos meios com que se
pode exercer a coerção física” (1992: 956).
O monopólio
da coerção física é a condição sine qua non da soberania do Estado
moderno. Essa tese, compartilhada por marxistas e liberais, concebe a política
como uma atividade cujo locus e referência é o Estado. Foucault
expressa a voz dissonante nessa maneira de ver a política. Para ele o poder
está difuso pela sociedade: “A questão do poder fica empobrecida quando é
colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em
termos de Estado ou de aparelho de Estado” (1979: 221). O poder se manifesta em
todos os aspectos da vida humana, em todos os níveis da sociedade, interligados
ou não ao Estado. Na concepção foucaultiana, o poder impregnou o próprio corpo,
encontra-se exposto neste.
Chega a ser
preocupante como a santa ingenuidade e/ou a ignorância quanto aos
fatos históricos resultam em um moralismo abstrato no que se refere à presença
da violência na política. As boas consciências ficam estupefatas e
até demonstram um certo mal estar quando se confrontam com esta realidade
histórica. “Mas como pode ter sido assim?”, se perguntam; e terminam por
debitar tais eventos à sanha pelo poder deste ou daquele indivíduo,
desconsiderando-se o processo histórico e, inclusive, a realidade presente.
A política,
para o bem ou para o mal, não prescinde da violência. A ascensão política da
burguesia exigiu rupturas fundadas no recurso à guerra e à revolução; do ponto
de vista econômico, não foi diferente: a burguesia precisou expropriar
violentamente os camponeses e transformá-los em mão-de-obra livre, isto é,
prisioneiros do sistema industrial enquanto trabalhadores assalariados. A
revolução industrial consumiu, literalmente, milhares de corpos, em especial as
mulheres e crianças. O progresso da civilização encontra-se estreitamente
vinculado ao sangue de milhões, vítimas da expansão colonialista e da
escravidão.[2] Eis o pecado original da
burguesia ou “o segredo da acumulação primitivo” desvendado por Marx em O
Capital.[3]
Que seria
dos poderosos e suas nações sem o extermínio de populações inteiras? Por acaso
as duas grandes guerras mundiais, o holocausto, o nazismo e o stalinismo, são
obras apenas da irracionalidade humana desvinculadas dos interesses políticos e
econômicos em permanente disputa? Foi a lógica da força que se impôs.
Eis a outra
face da política: a força materializada na violência em toda a sua crueldade.
Este fator, por mais bárbaro que se apresente, não é estranho à ação política.
Maquiavel, analisando os exemplos históricos do seu tempo, observou como o uso
da violência aberta resultou em determinados casos em fracasso e noutros em
sucesso. A que se deve esta diferença? Ele responde:
“Creio seja
isto conseqüência de as crueldades serem mal ou bem praticadas. Bem utilizadas
podem ser chamadas aquelas (se bem se pode dizer do mal) feitas de uma vez só,
pela necessidade de prover sua própria segurança, e depois são relegadas à
margem tornando-se o mais possível em vantangens para os súditos. Mal
utilizadas são as que, se bem sejam a princípio poucas, não se extinguem mas
crescem com o tempo.” (Maquiavel, 1977: 54)
Política e
religião
A violência
está presente em nosso cotidiano – inclusive assumindo formas dissimuladas. Ela
reina na periferia das grandes cidades, envoltas numa guerra civil diária não
assumida pelas autoridades; ela é prevista e legitimada no poder político, isto
é, constitui uma das funções do Estado, mesmo o democrático. Qual Estado pode
abrir mão do recurso da coerção e de todos os meios necessários para forçar os
cidadãos a obedecer a ordem dominante?
Tudo isso
parece não existir para determinados indivíduos que vivem no mundo das nuvens e
reduzem as contradições sociais à eterna luta do bem contra o mal. Como que num
transe coletivo, mas que paradoxalmente objetiva a salvação individual, estes
guardiões da moral e dos bons costumes adotam uma postura apolítica e voltam-se
para o intimismo. São profetas bem intencionados que constroem a cidade
de Deus, isto é, cuidam das suas almas. As questões sociais que assolam este
país passam ao largo. Sobram discursos que garantem audiência e, por trás da
histeria coletiva e individual, cada um busca sua própria salvação, ainda
que afirmem amar ao próximo!
Eles se aglomeram e oram, mas se limitam ao
individualismo egoístico espiritualizante.
Ledo engano!
A individualização das soluções para problemas terrenos, sociais, econômicos e
políticos, deslocados para um plano transcendental e intimista também cumpre um
papel político: alivia a pressão e funciona como uma espécie de anestesia
coletiva. Afinal, este intimismo religioso não questiona a realidade social
desigual e desumana, nem inquire sobre os responsáveis por tal situação. Induz
ao conformismo!
Que se entregue à divindade o bônus e o ônus! Ele assim o quis,
assim o será! Que as coisas permanecem como estão; a nossa recompensa está no
além. Essa mensagem de resignação é mais antiga do que parece. [4] Ontem como hoje, os poderosos
agradecem a tais profetas.
Eis como a
religião no mundo atual adentra na política: afastando-se desta ou procurando
instrumentalizá-la em nome de uma moral fundamentalista. Esta postura
individualista e/ou conservadora é a resposta aos que vêem na religião uma
força que deve se aliar à política para construir o reino de Deus aqui na
terra, mas numa perspectiva coletivista e que pressupõe uma opção política
pelos pobres e oprimidos.
O senso
comum diz que religião e política não se discutem. Pelo contrário, precisamos
refletir sobre a relação entre violência e política e, por outro lado, entre
estas e a religião. Um simples olhar sobre a história da humanidade evidenciará
a simbiose existente entre política, religião e violência. Como podemos
esquecer, por exemplo, a barbárie dos ‘santos inquisidores’ de ontem e de hoje,
uns em nome de Deus, outros em nome da razão do Estado? E o horror da noite de
São Bartolomeu? Que seria dos conquistadores da nossa América se não
utilizassem os recursos da Santa Madre?
Seria a violência política suficiente
para subjugar os povos dessas terras? E não foi a religião o cimento ideológico
que justificou barbaridades como a escravidão do negro e a submissão secular da
mulher? O puritanismo protestante foi empecilho para a dizimação dos povos
indígenas na América do Norte? E as risíveis cenas, se não fossem trágicas, de
religiosos, de um e outro lado, santificando exércitos em guerra?
Gostemos ou
não, política, violência e religião entrelaçam-se em diversos contextos
históricos. Há mesmo determinadas circunstâncias onde estão de tal forma
amalgamados que é difícil distinguí-los. Assim, a luta entre o Parlamento e a
Coroa inglesa no século XVII parece, ao estudioso desavisado, simples disputa
religiosa entre puritanos, anglicanos e católicos. O mesmo podemos observar
quanto ao conflito histórico entre protestantes e católicos na Irlanda e entre
palestinos e israelenses no oriente médio. Em ambos os casos, fatores
político-sociais secularmente sedimentados e influenciados pelas mudanças na
política internacional produziram realidades complexas com problemas
aparentemente insolúveis fora do recurso à violência.
E mesmo quando busca-se
uma solução pacífica, resultante das pressões políticas internas e externas
dentro de uma nova realidade internacional, a violência não está descartada. E
tudo parece uma disputa religiosa...
Os exemplos
são muitos. Podemos encontrá-los inclusive em nossa história. Para não nos
alongarmos, lembremos apenas que nossa frágil democracia conheceu poucos
períodos onde pôde desenvolver-se pacificamente. Na República Velha, a
oligarquia cafeeira tratou a questão social como caso de polícia e teve que
enfrentar a revolta armada da classe média da época: o movimento tenentista.
Esse movimento gerou a ‘Revolução de 30’, um ato violento que, entre outras
coisas, fecundou o Estado Novo.
Na ditadura estadonovista de Vargas, cristãos
que simpatizavam com os americanos ou com os nazi-fascistas se uniram contra o
inimigo comum, identificado com o próprio demônio na terra: o comunismo. A
política, de novo, recorreu aos valores morais-religiosos para justificar o
regime de exceção e a repressão.
Na segunda
metade dos anos 40 tivemos a ilusão democrática da legalidade para os
comunistas. Parecia então que o demônio fora exorcizado. Sabemos o final desta
história: nova onda repressiva, ilegalidade, clandestinidade. A democracia da
guerra fria, em nome da liberdade e dos valores democráticos, inverte a ordem
dos valores: antidemocráticos são os outros, os comunistas. Dessa vez,
porém, não precisou recorrer à religião (pelo menos não diretamente).
Em 1964 a
religião foi novamente utilizada na cruzada contra os esquerdistas — o que na
época significa avanços das lutas dos trabalhadores. As madames católicas
saíram às ruas em marcha fortalecendo a base social golpista; a cúpula da
Igreja silenciou e/ou apoiou os golpistas. Mas, também é verdade que setores
minoritários dessa mesma Igreja adotaram uma postura corajosa e favorável aos
explorados e oprimidos, contra o golpe militar, pela democracia e por uma
sociedade justa e igualitária. De qualquer forma, política, violência e
religião mesclam-se.
Política e
violência unem-se ainda na resistência ao golpe. De um lado a repressão
militar, as torturas, os desaparecimentos de filhos e filhas da nossa terra; de
outro, a ilusão de que o povo enfrentaria em armas a ditadura militar
impulsionado pelo exemplo da sua vanguarda. Às mães e pais desses jovens que
sucumbiram nas garras do aparato repressivo estatal e paraestatal restaram a
dor e a triste realidade de quem nem tem o corpo querido sobre o qual chorar.
Para os que professam a fé restava o consolo da religião.
A democracia
que temos foi regada com sangue. Não podemos esquecer o passado. Temos a
obrigação de legar às futuras gerações uma história que, quando muito, é
tratada nos livros e bancos escolares. Lembremos dos que, com erros e acertos
(mas só erra quem age) dedicaram a vida ao povo, ao sonho de uma vida melhor
para os excluídos da cidadania. Ontem tratados como terroristas, hoje como
subversivos e outros epítetos. Seus nomes são vários. Lembremos de dois: Carlos
Marighella, assassinado pela ditadura em 04 novembro de 1969; e, Santo Dias,
assassinado pela polícia sob o governo Maluf em 30 de outubro de 1979. Um,
guerrilheiro e comunista; outro, operário metalúrgico, militante da Pastoral
Operária. Eis a política, a violência e a religião em ação...
A política
para além do bem e do mal
O pensamento
de Niccóllo Machiavelle pode ser criticado por tudo, menos por ser
maniqueísta. Isso significa que a política deve ser pensada em sua realidade
concreta – que exige meios nem sempre abonados pela moral – e não de maneira
descritiva. Se é próprio aos filósofos contemplativos proporem o reino da
justiça e da felicidade humana como uma utopia a ser alcançada, sociedades
existentes apenas em suas cabeças, o homem de ação não pode se dar ao luxo de
pautar-se pela idealização do real. Neste aspecto, Maquiavel é realista e
antiutópico:
“E muita
gente imaginou repúblicas e principados que jamais foram vistos e nunca tidos
como verdadeiros. Tanta diferença existe entre o modo como se vive e como se
deveria viver, que aquele que se preocupar com o que deveria ser feito em vez
do que se faz, antes a prende a própria ruína do que a maneira de se conservar;
e um homem que desejar fazer profissão de bondade, mui natural é que se arruíne
entre tantos que são perversos” (1977: 86-87)
Os que
imaginam a política prisioneira da moral, de noções como o bem e o mal, ou são
ingênuos ou hipócritas.[5] Os primeiros parecem acreditar que o
mundo é habitado por anjos e demônios e não por seres humanos, com qualidades e
defeitos inerentes à sua humanidade e também com interesses opostos uns aos
outros e propensos à discórdia. Os homens competem, desconfiam uns dos outros e
buscam o poder e a glória. Somos ainda mais ingênuos e/ou hipócritas quando
tentamos isolar a política do cotidiano, como se no dia-a-dia, independente de
participarmos da política, não competíssemos e não buscássemos segurança e
reputação. Usando um termo que está na moda, esta atitude é uma forma de blindagem:
os maus são os outros, os políticos; a boa consciência do indivíduo
passivo e apolítico expressa a sua pretensão à pureza, à santidade; precisamos
demonizar os políticos para justificar nossa passividade e descomprometimento
diante dos dilemas sociais e humanos que envolvem o viver em sociedade.
A política não
pode prescindir da moral. Em outras palavras, por mais laico que seja o Estado,
os políticos também serão avaliados pelos valores fundados em preceitos morais
e religiosos. Sua sabedoria consiste em saber usar isto a seu favor e contra os
seus adversários. Assim, é cada vez mais comum a presença da linguagem
religiosa no discurso político. Mas se temos algo a aprender com a história é
precisamente o fato de que o mundo dividido entre o bem e o mal é uma ilusão. É
certo que esta é uma estratégia eficiente para o arrebanhamento de prosélitos,
mas é ineficiente para os que almejam compreender a realidade política e social
para além do bem e do mal. Afinal, o mal e o bem é inerente ao humano, seja ele
político ou profeta!
Palavras
quase conclusivas...
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