terça-feira, 15 de julho de 2014

Aos 90, morre Nadine Gordimer, Nobel de literatura e voz contra o Apartheid


No Brasil, autora tem publicados livros como ‘De volta à vida’ e ‘Tempos de reflexão — De 1954 a 1989’

Nadine Gordimer é considerada uma das maiores escritoras de seu país Foto: GUILLERMO ARIAS / AP

JOHANNESBURGO - Uma das maiores vozes a se levantar contra o regime do Apartheid, a escritora sulafricana Nadine Gordimer, ganhadora do Prêmio Nobel de 1991, morreu ontem, aos 90 anos, segundo anunciou sua família.

A obra dela é uma viagem ao coração das trevas do Apartheid. Foi esse o percurso literário de Nadine Gordimer, nascida na região rural da África do Sul, filha de imigrantes judeus vindos da Europa Oriental. Escrevendo sobre o amor, o ódio e amizade sob o jugo da minoria branca de seu país, ela ganhou vários prêmios pelo mundo — inclusive o maior deles, o Nobel de Literatura, em 1991. Era vista por muitos como a maior escritora da África do Sul e esteve no Brasil em 2007, quando foi convidada da Flip daquele ano, para uma mesa ao lado de Amos Óz.

Nadine aprendeu desde cedo a se importar com a opressão a qual os negros eram submetidos em seu país. Quando era pequena, sua mãe abriu uma creche para cuidar de crianças negras. Talvez porque a família da escritora já conhecesse a perseguição racial há gerações. Seu pai, afinal, fugira da Rússia czarista por conta do antissemitismo.

Nadine Gordimer foi uma das vozes mais poderosas contra a segregação racial na África do Sul. Não à toa, teve vários de seus livros censurados pelo regime, sob a acusação de que era subversiva. Sua última obra publicada no Brasil é “O melhor tempo é o presente”, pela Companhia das Letras, que edita a maior parte de seus livros, como “De volta à vida” e “A arma da casa”. Pela Globo Livros, Nadine tem publicado os dois volumes de “Tempo de reflexão”, coletânea de seus ensaios. Nadine escreveu mais de 30 livros, entre romances, contos e ensaios políticos ou de crítica literária.
Uma história de 2006 é um bom exemplo de sua posição política.

 Naquele ano, a autora teve sua casa invadida por assaltantes, que a trancaram na despensa. Ao comentar o incidente, ela mostrou solidariedade aos criminosos: “Acho que precisamos buscar as razões por trás do crime. Há jovens pobres e sem oportunidades. Eles precisam de educação e emprego”, disse em entrevista. Contra os pedidos de pessoas próximas, ela se recusou a se mudar para um condomínio fechado.

Nadine foi um dos primeiros membros do Congresso Nacional Africano (CNA), partido que elegeu Nelson Mandela presidente nos anos 1990, pondo fim ao Apartheid. Madiba conta em sua biografia que “A filha de Burger” (Rocco), livro de Nadine censurado à época, chegou às suas mãos na cadeia. Na ocasião, escreveu uma carta à autora elogiando a obra. Quando foi solto, os dois mantiveram contato por toda a vida. Além de Mandela, Nadine foi amiga de grandes intelectuais do nosso tempo, como a americana Susan Sontag e o palestino Edward Said.
Relação difícil com a mãe
Nadine sempre fez questão de dizer que não foi o Apartheid que a fez escritora, mas sim que a descoberta da literatura a levou a explorar a opressão dos brancos sobre os negros. “O fato de meus livros serem vistos como tão políticos se deve ao fato de eu ter passado a vida nesta sociedade tão influenciada pelo conflito político, o que em termos práticos, claro, é um conflito humano”, disse certa vez.

O coração de Nadine Gordimer batia muito rápido. Quando ela era pequena e sonhava ser bailarina — e entrava em todas as brincadeiras com as outras crianças —, sua mãe se assustou com o fato e a tirou da escola, com medo que algo de mau ocorresse. Nadine passou a ser educada por um tutor e usava a leitura para lutar contra seu isolamento. A autora dizia que virara “uma velhinha” aos cuidados da mãe.

Já na fase adulta, descobriu que sua taquicardia era resultado de um hipertireoidismo — e não apresentava nenhum risco. A escritora afirmava que a atitude da mãe vinha de seu casamento infeliz. Com uma paixonite pelo médico da família, era conveniente que a mulher tivesse uma filha que necessitasse de cuidados. Alguns críticos literários veem na obra de Nadine a dificuldade de crescer sob o domínio de uma mãe controladora.

Um dos momentos mais difíceis de sua carreira literária veio nos anos 1970, quando os movimentos negros começaram a excluir os brancos de suas trincheiras. Nadine acabou afastada de outros intelectuais, e seu trabalho foi alvo de críticas. Os ativistas anti-Apartheid diziam que uma escritora branca jamais poderia contar uma história pelo olhar de um personagem negro. Nadine rebateu assim tal acusação: “Há coisas que os negros sabem sobre os brancos que não sobre nós mesmos, por ocultá-las em nossas relações — mas o contrário também ocorre”.

Fim do Apartheid

Com o fim do Apartheid, muitos críticos literários duvidaram que ela continuaria escrevendo, uma vez que teria perdido o grande tema de sua literatura. “Não afeta o meu trabalho. Porque não foi o Apartheid que me fez escritora, e não é o fim dele que vai me parar”, disse, e continuou a publicar. Ganhar o Nobel serviu de estímulo, porque Nadine dizia não querer que o prêmio fosse “uma lápide em sua cova”.

Nadine Gordimer já havia anunciado, em 2013, sofrer de um câncer no pâncreas. A autora morreu enquanto dormia, no último domingo, segundo anunciou sua família. Ela deixa dois filhos.



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