segunda-feira, 26 de maio de 2014

Hoje é 27 de maio, já ouviu falar de João Amazonas, um revolucionário ir repetível





A morte de grandes figuras políticas suscita sempre comentários que expressam avaliações diferentes, por vezes antagônicas, do significado da sua intervenção na historia.

Isso acontece não somente entre os adversários, mas também entre aqueles que admiraram o desaparecido e se situam no mesmo quadrante ideológico.

Incluo nessa categoria de homens João Amazonas, falecido a 27 de Maio pp.

A dificuldade que enfrento, o escrever sobre o revolucionário e o amigo, não a encontro na sua personalidade nem no seu percurso de combatente. Dele se pode dizer que foi um comunista exemplarmente coerente.

É em mim que encontro a dificuldade. O PC do B nasceu em 1962 da crise profunda que abalou o Partido Comunista Brasileiro após o XX Congresso do PCUS.

Sendo um comunista português, as circunstancias da luta levaram-me a militar, simultaneamente, como internacionalista, no Partido Comunista Brasileiro. Com ele fiquei após a cisão que golpeou a maior força política da esquerda brasileira, anunciadora das que se produziriam nos anos da ditadura.

Não teria sentido entrar aqui na apreciação das polemicas então travadas em torno do Relatório do XX Congresso, de Stalin e da estratégia posterior de Kruchev. Apenas recordarei, por ser inseparável do tema deste artigo, que me distanciei das posições maximalistas assumidas então com paixão. Sempre separei o homem Stalin — cuja personalidade e métodos me inspiravam repulsa — do juízo de valor sobre a URSS da sua época, prestigiada universalmente pela vitoria sobre a Alemanha nazi, e da contribuição decisiva para a descolonização e as grandes conquistas económicas e sociais que fizeram da pátria de Lenine um pais desenvolvido e o único adversário respeitado pelo imperialismo.

Este esclarecimento prévio facilita a compreensão de uma evidencia que para muitos intelectuais de esquerda continua a não ser obvia: transcorridas quatro décadas sobre a crise de 62, o PC do B não pode, naquilo que é hoje, como partido marxista-leninista revolucionário, ser cabalmente compreendido apenas através da exegese dos acontecimentos ocorridos na URSS depois da morte de Stalin.

Não obstante o PC do B ter, ao longo dos anos, reafirmado a fidelidade a posições assumidas durante o conflito sino-soviético, não é também na aceitação das teses chinesas sobre a estratégia da tomada do poder e, portanto numa aproximação ao maoismo, que poderemos encontrar a explicação de um fenômeno político que desconcerta os analistas da burguesia: a sobrevivência de um pequeno partido que, perseguido com ferocidade pela ditadura dos generais, foi na luta crescendo enquanto se enraizava progressivamente entre os trabalhadores.

O que define a intervenção na historia de um partido comunista é, antes do mais, o seu comportamento como organização revolucionaria no pais onde se formou e actua. É a sua atitude no combate diário perante o inimigo — a classe dominante e o imperialismo — a fidelidade aos objectivos traçados, o respeito pelo funcionamento interno da democracia socialista (tão espezinhado na URSS) e a permanente consciência de que o povo é o sujeito da historia.

O PC do B terá sido desde o seu aparecimento o mais severamente criticado dos partidos da esquerda marxista brasileira, o mais maltratado pela intelligentsia burguesa, o mais ignorado pelos mas media. Apesar disso, foi o único que cresceu na luta. Não abdicou dos ideais, dos princípios e da pratica comunista quando, nos anos 70 e 80, o PCB entrou no processo de degenerescência culminado com a renuncia ao nome e aos símbolos e com a metamorfose que deu origem ao Partido Popular Socialista (PPS), caricatura do antigo partido de Luiz Carlos Prestes.

Foi nesse contexto que a tríada formada por João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar desempenhou um papel fundamental, dirigindo um pequeno e acossado partido revolucionário. Foi com assombro que nas grandes cidades do Sul, submetidas ao terror da ditadura, se tomou conhecimento de que o Exercito mobilizava milhares de homens para combater algures, nas selvas do baixo Araguaia, uma guerrilha fantasmática, de perfil quase legendário, que desafiava o poder de contornos fascistizantes que oprimia o povo brasileiro.

Eram os combatentes da força que entraria na historia com o nome de Guerrilha do Araguaia. Quase todos pereceram nessa trágica epopeia.

Um quarto de seculo depois, em 1996, tive em Brasilia o privilegio de participar, como ex-parlamentar português, numa audiência promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para ouvir depoimentos sobre a chacina dos últimos guerrilheiros do PC do B, acto político em que a principal intervenção esteve a cargo de João Amazonas.

Não esqueço que nessa tarde, ao intervir na discussão, alertei os presentes para duas questões que me preocupavam e continuam, alias a preocupar, relacionadas com a ética e a paixão no debate ideológico travado dentro da esquerda, com o sectarismo e o dogmatismo e também com a coerência nas lutas revolucionarias.

Quase todos os que num passado relativamente próximo, como dirigentes ou simples militantes de partidos e organizações revolucionarias — e estavam na sala alguns — se tinham batido em múltiplas frentes contra a ditadura terrorista haviam durante anos, refletindo a atmosfera da época, não somente falando e actuando como se a estratégia do seu partido, na luta contra o inimigo comum fosse não apenas a mais lúcida e adequada ao momento histórico como a única aceitável, mas assumindo também na critica perante os companheiros de outros sectores da esquerda revolucionaria uma atitude arrogante e dogmática.

Quantos não haviam, então, prejudicado com o seu sectarismo os objectivos por que se batiam? A grande maioria. Pelo que me dizia respeito, fazia ali acto de mea culpa.
Ora, contemplados já com algum distanciamento aqueles anos, chegava-se à conclusão que nenhum partido tinha então concebido, como os factos demonstraram, uma estratégia infalível que levasse à vitoria. Nem isso era possível no contexto histórico e com a relação de forças existente.

Recordando o panorama de lutas da época, o que me comovia na audiência que ali nos reunia naquele salão da Câmara de Deputados era o profunda admiração que todos nos, homens e mulheres que havíamos militado em partidos diferentes, sentíamos agora pelos guerrilheiros do Araguaia e por quantos, noutras frentes, haviam levado a sua coerência de revolucionários, comunistas e não comunistas, até à entrega do bem supremo que é vida. Evoquei, numa transposição de cenário, o combate heróico e consequente dos dirigentes dos movimentos de libertação das colônias portuguesas no tempo em que os governantes fascistas de Lisboa os definiam como «bandoleiros e assassinos». E, contudo — sublinhei — passados 16 anos, os presidentes das jovens Republicas Africanas nascidas desse combate eram aplaudidos de pé no parlamento português e iam dormir nas camas dos antigos reis de Portugal, no Palácio de Queluz.


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